Fio da Meada #34 | Nostalgia algorítmica
O que significa lembrar quando tudo já foi otimizado para engajar
Tempo de leitura: 6 minutos
Eu voltei e bem no dia de quarta-feira de cinzas. Talvez um tico mais ácida que antes e com vontade de trazer mais reflexões e menos respostas de um mundo cada vez mais volátil.
Um beijo
- Ana
Segue o fio
🧵 As edições passadas:
Fio da Meada #32 - O futuro da percepção
Fio da Meada #33 - O Efeito Borboleta veio pra ficar?
“O futuro não é mais como era antigamente”
Paul Valéry já sabia, mas a gente só percebe quando o presente virou um scroll infinito e o futuro, um algoritmo que só nos entrega o que já foi testado antes.
O que a gente chama de memória pode ser só um loop bem programado.
O TikTok trouxe de volta a voz de Evinha, cantora dos anos 60 e 70, porque BK incorporou sua música no novo álbum. Um encontro de gerações? Bonito na teoria, previsível na prática. A nostalgia virou uma estratégia de retenção, e o passado, um ativo digital otimizado para viralizar.
O fenômeno de Evinha não é isolado. Antes dela, Running Up That Hill, de Kate Bush, foi resgatada por Stranger Things e voltou ao topo com 1BI de reproduções no Spotify quase 40 anos depois de lançada. A cultura digital não apenas recicla referências – ela as reprograma para que nunca saiam de cena.
O padrão está claro: quando o presente parece instável, buscamos refúgio em um passado que talvez nunca tenhamos vivido
Mas agora esse passado não apenas volta – ele é selecionado, embalado e distribuído na velocidade do engajamento.
O passado, que antes era um território de lembranças e afetos, virou um menu suspenso de revivals, remixes e referências recicladas. A moda, a música e a estética do digital, seguem o padrão daquilo que já foi testado e aprovado, como a ascensão do “básico” na moda como resposta ao esgotamento das tendências ultra-rápidas.
A cultura digital transformou a nostalgia em um ciclo contínuo onde tendências passadas voltam não porque queremos lembrar, mas porque funcionam bem no feed.
Esse fenômeno tem nome: nostalgia algorítmica – a reciclagem infinita de referências não porque elas fazem sentido emocionalmente, mas porque são altamente rentáveis dentro do ecossistema digital.
🧶 Nas entrelinhas, o que isso quer dizer?
A nostalgia sempre existiu, mas antes ela surgia como um desejo espontâneo de resgatar algo significativo.
Agora, ela foi transformada em produto, em métrica, em retenção de tela. O que viraliza não é necessariamente o que queremos lembrar, mas o que se encaixa no modelo de engajamento e pode ser reproduzido indefinidamente.
O Brasil hoje tem mais celulares ativos do que habitantes:
Estamos conectados o tempo todo, mas estamos vendo algo novo? Ou só aquilo que o algoritmo decidiu que merece ser lembrado?
A lógica algorítmica não só dita o que consumimos, mas nos treina para desejar sempre aquilo que já foi testado antes. A nostalgia deixou de ser um sentimento e virou um método de controle narrativo.
Foucault talvez dissesse que vivemos em um panóptico invertido, onde a vigilância não vem de um único centro de poder, mas de uma lógica coletiva: o que é visto, existe; o que não viraliza, desaparece. A memória digital não arquiva, ela edita. Quem decide o que lembrar? O algoritmo. O que é descartado? Tudo que não se encaixa na métrica do engajamento.
O digital leva esse conceito ao extremo: o passado retorna, mas não para ser elaborado – ele volta porque foi programado para nunca desaparecer
Sem tempo para digerir o presente, o passado é recodificado e servido repetidamente, com nova embalagem e trilha sonora otimizada para viralizar. A gente chama de saudade, mas talvez seja só um reflexo condicionado – um feed curado de lembranças que nunca escolhemos de verdade.
Estamos realmente lembrando ou apenas consumindo aquilo que o algoritmo decide que merece ser lembrado?
O TikTok e o “For You” editam a memória coletiva como quem reescreve um roteiro: destacam o que prende a atenção, apagam o que não converte e remixam o que pode viralizar. Se antes lembrar era um ato espontâneo, agora é um processo gerenciado, segmentado e otimizado para engajamento.
Não é memória afetiva, é cálculo preditivo
Se quisermos sair desse looping, precisamos entender como as histórias que consumimos são estruturadas. A nostalgia não apenas nos conforta, mas nos molda, nos ensina a desejar sempre o mesmo.
Quanto mais interagimos com essas repetições, mais fortalecemos um sistema que nos vende uma versão pré-editada da nossa própria memória. Talvez seja hora de parar de aceitar essa nostalgia fabricada e perguntar: o que foi esquecido porque não era conveniente lembrar?
Pelo menos temos o Ainda Estou Aqui para que seja lembrado sempre que possível.
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🧵 Para você continuar a desatar os nós
Porque as músicas antigas têm crescido no TikTok [Link]
Como a era digital mantém nosso passado vivo e lucrativo [Link]
Uma retrospectiva nostálgica [Link]
BK e o papel revolucionário da memória brasileira [Link]
A nostalgia está matando a criatividade? [Link]
Pontos de vista
📖 "O passado não está morto, ele nem sequer passou." – William Faulkner, Requiem for a Nun [Link]
O trocadilho semântico entre Faulkner e Foucault me pegou muito aqui RISOS. Se o primeiro falava de um passado que nunca desaparece, o segundo nos lembrava que o que chamamos de verdade nada mais é do que um discurso estruturado pelo poder.
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📖 “O inconsciente não é perder a memória; é não se lembrar do que se sabe.” - Jacques Lacan, Outros Escritos [Link]
Se no inconsciente, o recalque impede o sujeito de recordar diretamente um trauma, na nostalgia algorítmica, o esquecimento não vem da falta de acesso, mas do excesso de curadoria. A cultura digital não está atrelada a uma memória espontânea, ela é um desejo induzido – fragmentos do que já viralizou antes.
👩💻 Criado por Ana Talavera | Substrack, Linkedin e Instagram
🧶 “Perder o fio da meada” acontece quando alguém se perde no meio de um pensamento ou caminho. Mas será que se perder não é, às vezes, a melhor forma de encontrar algo novo?
Essa é a missão do
: seguir os fios, encontrar intersecções e desatar os nós da cultura digital, da sociedade e da tecnologia.